Artigo | Sistema de muitos partidos não impede que surja um Biden brasileiro

Foi visto com compreensível ceticismo o encontro entre Luiz Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes, realizado em setembro e revelado no último dia 29 pelo repórter Sérgio Roxo, no jornal “O Globo”.

É sempre tratada com irrefutável otimismo a união em torno de Joe Biden, o candidato democrata que pode, na terça (3), derrotar Donald Trump e sua fábrica de horrores.

À primeira vista, nada há em comum entre o encontro de São Paulo e a eleição mais importante do mundo em décadas. Mas, aqui do lado de baixo do Equador, uma vitória de Biden pode servir como lição e esperança.

O sistema político dos Estados Unidos é, na prática, bipartidário, embora existam outras siglas. Republicanos e Democratas disputam todas as cadeiras, executivas e legislativas. Ainda assim, nem sempre os pré-candidatos derrotados nas votações internas dos partidos, as primárias, engajam-se na campanha do nome vitorioso. Desta vez, porém, todo o espectro democrata, até o autodenominado socialista Bernie Sanders, fechou em torno de Biden. Compreendeu-se que vencer Trump é impor a civilização ante a barbárie – uma vitória não apenas nacional, mas global.

Nunca é demais lembrar o que aconteceu na França em 2002: toda a esquerda apoiou o conservador Jacques Chirac no segundo turno da eleição presidencial para impedir que Jean-Marie Le Pen, de extrema direita, vencesse. A defesa da civilização veio em primeiro lugar.

No Brasil, a esquerda se dividiu na campanha de 2018 e continua dividida após quase dois anos de governo Bolsonaro. Não há mais dúvidas sobre o projeto anticivilizatório do presidente, com seus ataques à democracia, à independência do Judiciário, ao meio ambiente, aos povos indígenas e à vida alheia em geral. Sua atuação foi fundamental para que estejamos chegando aos 160 mil mortos pela Covid-19. E ele já iniciou seus esforços contra a necessária vacinação em massa da população – quando as vacinas estiverem disponíveis.

Era inviável que esforços coordenados contra o governo federal se dessem nas eleições municipais. Obedecem outras lógicas as disputas locais num sistema pluripartidário. Além disso, Bolsonaro não montou uma rede de candidatos que o representem e que formariam um adversário comum a se enfrentar. Nem partido ele tem. Com exceção do Capitão Wagner (PROS), em Fortaleza, aqueles que decidiu apoiar estão mal ou em queda nas pesquisas, casos de Celso Russomanno em São Paulo e Marcelo Crivella no Rio.

Teria sido muito interessante ver uma união em torno de Marcelo Freixo, como se tentou no Rio – por não conseguir a aliança ampla, o deputado federal do PSOL desistiu da candidatura. Ou ver o PT de São Paulo abrir mão da cabeça de chapa e apoiar Guilherme Boulos (PSOL). O partido aceitou o lugar de vice de Manuela D’Ávila (PCdoB) em Porto Alegre e Edmilson Rodrigues (PSOL) em Belém. Os dois nomes lideram as pesquisas. Ou, de alguma forma, ver PT e PDT juntos em Fortaleza, reproduzindo o suporte que Ciro e Cid Gomes (PDT) dão ao governador Camilo Santana (PT) – articulador, aliás, do encontro entre Lula e Ciro. Não aconteceu, e as duas legendas estão se engalfinhando por um lugar no segundo turno.

A reportagem de capa de ÉPOCA desta semana mostrou que o PT ainda quer fazer omelete sem quebrar os ovos. Quer manter a hegemonia no campo da esquerda, quer que Lula seja reconhecido por todos como o grande líder, quer que Ciro se dobre e peça desculpas por não ter apoiado Fernando Haddad no segundo turno em 2018 – sua atitude foi, de fato, egoísta e irresponsável, mas política se faz mais com o cérebro do que com o fígado. Para voltar a ter alguma coisa, o PT não pode querer ter tudo. Até porque é alvo de enorme rejeição. O mesmo vale para Ciro. O candidato de união em 2022 precisará ser de consenso.

Assumir que Bolsonaro, para orgulho dele, é o Trump brasileiro precisa ser o ponto de partida para as conversas que a esquerda terá nos próximos dois anos. Uma reeleição dará a ele mais tempo para nomear ministros do Supremo Tribunal Federal, aparelhar as instituições para encobrir as falcatruas de seus filhos e amigos, causar mais destruição e mortes em tudo para onde aponta.

A vitória de Trump significará esse mal em âmbito planetário. Dará gás a governos de extrema direita como os da Hungria, da Polônia, da Índia, do Brasil. A vitória de Biden poderá levantar o ânimo dos arrasados de hoje. Os que, por aqui, não compactuam com a barbárie precisarão ter humildade e tolerância. Ou afundarem abraçados à própria soberba.

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