SANTIAGO - A explosão social de 2019 e a posterior pandemia da Covid-19 puseram em xeque um dos emblemas da economia chilena. As Administradoras de Fundos de Pensão (AFP), criadas na ditadura como o principal sistema de previdência social, sofreram um grande abalo depois que os cidadãos, sem ter como sobreviver na crise pandêmica, tiveram autorização para sacar em três ocasiões parte do dinheiro que estava destinado a sua aposentadoria.
O tema deverá ser um dos principais desafios dos constituintes eleitos neste fim de semana, que redigirão uma nova Carta para substituir a herdada de Augusto Pinochet. Quatro deputados ouvidos pelo GLOBO, da esquerda à direita, concordam que o sistema deve ser modificado.
Criado em 1981, o sistema chileno é baseado na capitalização individual. O valor da aposentadoria do trabalhador depende de com quanto ele contribuiu, diferentemente do regime de repartição brasileiro, em que as gerações na ativa contribuem para quem está aposentado. No Chile, o dinheiro arrecadado vai para sociedades anônimas que o investem nos mercados. A ideia dos “Chicago boys” chilenos foi adotada pelos governos democráticos, que fizeram apenas algumas modificações, como a criação do Pilar Solidário, fundo para financiar uma pensão básica para 600 milhões de chilenos sem economias.
Os protestos de 2019 já haviam chamado atenção para as baixas aposentadorias pagas pelas AFP: a média das pensões é de 250 mil pesos (R$ 1.875) no caso dos homens e de 150 mil pesos (R$ 1.125) no das mulheres. Depois, as quarentenas para conter a pandemia paralisaram a economia. A incapacidade do governo do presidente Sebastián Piñera de adotar medidas de compensação rapidamente e a sua resistência em criar uma renda básica universal levou os congressistas a aprovar leis para aliviar o mal-estar social. Entre elas, os saques dos fundos em poder das AFP, que somam US$ 200 bilhões.
Em julho de 2020, o Legislativo autorizou cada trabalhador chileno a retirar 10% de suas economias. Em novembro, foi autorizado um segundo saque do mesmo percentual. Finalmente, em abril deste ano foi dada a luz verde para a terceira retirada.
— Com o terceiro saque vamos passar dos US$ 50 bilhões em fundos retirados e não é possível recuperá-los — advertiu na época Osvaldo Macías, superintendente de Pensões.
Enquanto o tema não passa à Constituinte, os atuais congressistas debatem o que fazer com o sistema. Para o deputado Gonzalo Winter, da Convergência Social, de esquerda, o colapso das AFP é anterior às retiradas, porque o modelo fracassou como sistema de previdência social.
— Ninguém realmente pode se aposentar pelas AFP e ficar acima do nível de pobreza. Os que recebem a pensão básica solidária tampouco têm as condições mínimas para viver no Chile — disse Winter. — Pelo atual sistema, um grupo reduzido de pessoas da elite, muito ligado à ditadura e ao sistema político, tem mais poder de modelar a sociedade chilena do que o Estado, pois são os únicos que podem decidir onde investir o dinheiro dos trabalhadores.
Segundo o deputado, o objetivo das AFP sempre foi ser um mecanismo “dinâmico de injeção de capital no mercado financeiro”. Por isso, disse, é preciso “construir outro que cumpra o objetivo” de dar vida digna aos aposentados.
A deputada Alejandra Sepúlveda, da Federação Regionalista Verde Social e integrante da Comissão de Trabalho da Câmara, afirmou que a crise mostra que o sistema de capitalização individual “por si só não serve para as pensões” e funciona mais como “um sistema de economias”. Ela propõe um modelo misto, onde o dinheiro de contribuição dos trabalhadores “seja efetivamente destinado à entrega das aposentadorias e não ao fundo que empresta o dinheiro aos grandes empresários”.
— Uma das demandas mais importantes da explosão social foi esta e, independentemente das retiradas agora, continuará sendo, porque é uma dívida histórica — disse.
Antes que os constituintes definam um novo modelo, Sepúlveda defende que parte das atuais contribuições seja transferida para um sistema de repartição, deixando as AFP em segundo plano.
— Isso, mais o Pilar Solidário, daria como um resultado um sistema de três eixos mais equilibrado, sem as diferenças aberrantes que há hoje entre homens e mulheres.
Já o deputado Gabriel Silber, da Democracia Cristã, defende uma reforma tributária que injete mais dinheiro no Pilar Solidário. Para isso, diz, as alíquotas de contribuição para a previdência social teriam que passar dos atuais 10% das remunerações para 16% a 20%, que é a média dos demais países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Silber diz ter como referência o Canadá , onde um órgão público e autônomo gerencia os fundos de pensão e os protege, “mas com uma musculatura em termos de investimentos que lhe dá uma robustez muito maior do que as AFP em termos de rentabilidade”.
— Se as novas gerações repudiam o sistema que temos é porque não há nenhum tipo de solidariedade, ele foi desenhado sob a lógica do salve-se quem puder — afirmou Silber.
Deputado do Renovação Nacional, o partido de Piñera, Francisco Eguiguren também concorda que “as AFP entregam pensões miseráveis”.
— Não dão nem para os remédios ou a comida e são uma angústia permanente para as pessoas — afirma o deputado.
Como Silber, Eguiguren aponta que a baixa alíquota de contribuição influiu no fracasso do sistema, que exige “reformas profundas”.
— Acredito que esse tema deve estar na nova Constituição e que deve haver uma definição de pensões que permitam às pessoas ter uma vida digna depois de aposentadas.
O deputado conservador diz esperar que o governo “tenha aprendido a lição” e aprove logo uma “renda familiar de emergência universal”, que evite mais saques das AFP.
— Nenhum de nós que apoiamos as retiradas o fizemos achando que era uma boa alternativa. Temos que caminhar para um sistema misto de pensões, onde o pilar contributivo seja importante, mas a atividade solidária seja potente e financiada pelos impostos gerais. Não deveria haver nenhuma aposentadoria no Chile que seja menor que o salário mínimo [de 250 mil pesos].
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