Bolsonaro sabia que não era só uma ‘gripezinha’

Apesar de minimizar publicamente a gravidade da pandemia de Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro sempre esteve ciente da tragédia que se desenhava em letras garrafais e que, em pouco mais de sete meses, nos trouxe à marca fatídica de 150 mil vidas perdidas — comparável ao número de vítimas da bomba atômica lançada sobre Hiroshima em 1945.

Bolsonaro foi alertado repetidas vezes para o que estava por vir, como relatou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta no livro “Um paciente chamado Brasil”, narrativa dos bastidores da batalha contra o vírus enquanto comandava o ministério.

Numa reunião na Biblioteca do Palácio da Alvorada, em 28 de março, com a presença de quase todos os ministros, Mandettta conta ter levado ao presidente três cenários. No mais otimista, que ele próprio achava improvável, o novo coronavírus mataria 30 mil brasileiros. O intermediário previa entre 60 mil e 80 mil mortes. E o mais pessimista projetava 180 mil, caso o país não adotasse distanciamento social e padrões rígidos de higiene e proteção. “Apresentei os números na tela, mas fiz uma cópia impressa de tudo, que entreguei nas mãos do presidente, na frente de todos os ministros, para que ele nunca dissesse que não tinha conhecimento dos fatos”, diz Mandetta.

Àquela altura, o país registrava 3.904 infectados (hoje são 5 milhões) e 114 mortos pelo novo coronavírus. Que fez o presidente? Tudo o que não deveria ter feito, narra Mandetta: “Continuava indo ao encontro das pessoas, provocando ajuntamentos, dava declarações contra o distanciamento social. E foi depois da reunião na biblioteca do Alvorada que começou a ter esse tipo de atitude de forma mais sistemática”.

O isolamento social, essencial para conter a disseminação do vírus, sempre foi rechaçado por Bolsonaro. Mandetta conta que, para o presidente, a paralisação das atividades era um golpe dos governadores para inviabilizar seu governo e causar uma convulsão social. Temia que abrisse caminho à volta da esquerda ao poder, com apoio da China. “Era um delírio de múltiplas conspirações, que alimentava a tese de que o coronavírus fora produzido em laboratório, era uma arma biológica, e isso ainda ia ser comprovado.”

Nesse mundo apartado da Ciência, a cloroquina tornou-se uma obsessão. Segundo Mandetta, Bolsonaro quis até mudar a bula do remédio para incluir a Covid-19, apesar de vários estudos terem demonstrado que ele não tem eficácia contra a doença e pode contribuir para agravá-la. Diante da resistência dos técnicos, a ideia não prosperou. Divergências sobre a cloroquina foram o pivô da saída de Mandetta e de seu sucessor, Nelson Teich, do ministério.

Bolsonaro não é o único responsável pela tragédia provocada pelo novo coronavírus. O STF deu autonomia a governadores e prefeitos para que tomassem medidas de combate à Covid-19. De forma geral, eles também falharam — sem falar nos apanhados desviando recursos públicos para o combate à doença. Mas a responsabilidade de Bolsonaro, como chefe da nação, é incontornável. Bolsonaro tratou a mais devastadora pandemia em cem anos como uma “gripezinha”. É seu nome que ficará gravado nos livros de História.

Sete meses e inúmeros erros depois, a epidemia desacelera, com queda ou estabilidade na maior parte do país. Mesmo assim, o Brasil ainda registra mais de 600 mortes por dia. Um brasileiro morre de Covid-19 a cada dois minutos. Não se arredou pé do cadafalso. Apenas a vacina trará de volta algo parecido com a normalidade.

No auge da pandemia, ao responder a uma apoiadora que lhe pedira uma palavra às famílias enlutadas, Bolsonaro disse: “Lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. Havia outros destinos. Se Bolsonaro não tivesse ignorado os alertas; se tivesse havido ação coordenada no combate à doença; se não desprezasse a Ciência, se tivesse testado maciçamente a população para identificar os infectados e isolá-los, a sina da maioria das 150 mil vítimas teria sido outra. No pior cenário, o destino que lhes restou foram as covas coletivas e os enterros solitários.

Enregistrer un commentaire

0 Commentaires