Mansur: Botafogo abusou dos erros, mas é também vítima da globalização

Há um aspecto especialmente melancólico no terceiro rebaixamento da história do Botafogo. É justo ponderar que a pandemia e a consequente falta de público dos estádios retiraram do cenário as lágrimas, as imagens de desespero de quem se vê diante de uma tragédia inimaginável. Ocorre que tudo transcorreu com tamanha naturalidade, como se de uma inevitabilidade se tratasse. Era como se o Botafogo seguisse o seu destino natural no contexto do jogo moderno.

A placidez com que o alvinegro foi seguindo seu curso rumo à Série B, a certeza construída rodada após rodada de que ali estava um futuro integrante da segunda divisão, talvez seja um sintoma da farta lista de equívocos do clube nesta e nas temporadas recentes. O clube ajudou a fabricar o seu longo processo de definhamento. Mas é também o retrato de um fenômeno que não é alvinegro, não é carioca e tampouco brasileiro: o futebol global é concentrador de riquezas, devorador de antigas potências, construtor de uma elite cada vez mais restrita. O Brasil não fugiria à regra, o Botafogo é apenas um dos membros da antiga elite sob risco de sucumbirem à nova ordem.

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Quanto mais se globaliza, mais o jogo atual se torna excludente. As conquistas locais, regionais, já não sustentam uma percepção de sucesso, muito menos geram impulso econômico. A injeção de dinheiro novo depende, cada vez mais, de tamanho de torcida e capacidade de mobilização de multidões. E, se possível, para muito além de suas fronteiras locais. Num futebol brasileiro ainda distante de se internacionalizar, a nova estratificação de forças irá privilegiar as grandes potências de alcance nacional. Os resultados recentes indicam quem tem lugar na nova elite.

No jogo atual, os títulos que valem são nacionais, continentais. E estes são acessíveis a poucos.Dependem do dinheiro que compre elencos de maior porte, gerando melhores contratos comerciais e ampliando as disparidades crescentes. O jogo é bruto para um Botafogo que, numa cidade com quatro camisas de enorme peso e tradição, tem provavelmente a menor base de torcedores.

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Mundo afora, um roteiro padronizado caracterizou o processo de encolhimento de antigas grandes marcas. Primeiro, se viram superadas pelas grandes potências econômicas; depois, geriram mal as expectativas, fossem de dirigentes ou de torcedores, tentando manter artificialmente seu status na primeira prateleira do jogo; acumularam dívidas até o buraco se tornar fundo demais.

De Seedorf a 2021, o Botafogo primeiro tentou competir com um time que não era capaz de pagar. Aos poucos, viu sua dívida, na casa do bilhão de reais, estrangular o clube de menor geração de receita dentre os grandes do Brasil. Num país que impõe a obrigação de vitória aos chamados 12 grandes, alternou entre calotes em jogadores e mecenas que apagavam incêndios. Obrigado a vencer, afinal no Brasil é sempre preciso ter “um time à altura das tradições”, caminha para sua décima troca de treinador em pouco mais de três anos.

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A globalização não conduz o futebol a bom caminho. A concentração de riquezas e a construção de uma elite que mais parece um clube fechado não é saudável. E, neste aspecto, é até possível ver o Botafogo como uma vítima deste processo.

Mas o clube abusou do direito de errar. Por vezes, parece resistir a enxergar a nova ordem e assumir um novo status, talvez refém de uma história magnífica. Há bons exemplos a seguir no Brasil, alguns deles no Nordeste, onde clubes com força regional operam com eficiência dentro do que o dinheiros lhes permite comprar. Para quem não está na elite, vive-se a era do erro zero.

Para voltar a ser competitivo, mesmo que numa prateleira abaixo da elite, o Botafogo terá que parar de errar. E em tacadas certeiras pode, até mesmo, se reencontrar com taças. Mas resta saber se o tempo perdido não foi demais. O Botafogo de hoje se enfraqueceu até dentro de seu mercado regional. O trajeto da reconstrução é dos mais longos que o Brasil já viu se colocar diante de um gigante nacional.

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