SÃO PAULO — No auge da segunda onda da pandemia no Brasil, a psicóloga Ana Paula dos Santos, de 36 anos, deparou-se com o pai e o irmão mais velho internados com Covid-19 ao mesmo tempo, com quadros de saúde piorando a cada dia. Também contaminada e isolada em sua casa em Mogi das Cruzes, no interior de São Paulo, ela esperava diariamente pelos boletins médicos enquanto tentava convencer a equipe de saúde do hospital a conversar com os familiares doentes.
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No começo de abril, Ana Paula perdeu ambos para o coronavírus em um intervalo de dois dias. Do irmão, Fabio, Ana Paula não pôde se despedir. Para o pai, Claudionor, depois de bastante insistência, ela conseguiu dar o último adeus.
— Meu pai faleceu dois dias depois que fizemos uma videochamada com ele. Foi um acalento no coração, porque é muito difícil não ver, não falar, não ouvir a entonação da voz. Foi muito significativo para nós, porque sabíamos que aquela talvez seria a última vez — contou a psicóloga.
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Durante a pandemia, as visitas virtuais por videochamadas se tornaram praticamente a única alternativa de contato entre pacientes isolados em leitos hospitalares e seus familiares. Essa conexão, defendem os médicos, pode inclusive ajudar na recuperação dos doentes, abalados pela solidão e pelo medo da morte.
No vácuo da lei
Não existem regras válidas para todo Brasil para a realização das chamadas de vídeo. Algumas cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, têm leis municipais que liberam a prática. Mas, em geral, fazê-las ou não depende da boa vontade de cada instituição hospitalar e dos profissionais de saúde.
Diante da ausência de uma legislação federal que trate do tema, a médica geriatra Ana Claudia Arantes começou uma saga pessoal para destravar um projeto de lei que tenta nacionalizar o direito às visitas virtuais.
Com especialização em Oxford e trabalhando com cuidados paliativos há mais de 20 anos, Ana Claudia foi responsável pela criação dessa área num dos mais renomados hospitais de São Paulo, o Albert Einstein. Por mais de uma vez, usou da sua influência no meio médico para que conhecidos seus pudessem demonstrar afeto ou até mesmo se despedir de familiares internados com Covid-19. Ajudou uma mensagem de voz a chegar aos ouvidos da mãe de uma técnica de enfermagem hospitalizada. E colocou seus próprios filhos para falarem com o pai deles, internado numa UTI.
— O familiar que tem a oportunidade de expressar a preocupação e o amor para quem está internado tem chance de ter processo de luto mais ameno. É algo tão básico, tão simples. E não é só para dizer adeus. Essa conexão ajuda na recuperação. Eu mesma presenciei a pressão de um paciente melhorar e a oxigenação aumentar quando ele reconheceu a voz de amigos — disse Arantes.
Resistência do Cremesp
No final de abril, ela se deparou com uma notícia que a deixou enfurecida. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) emitiu um parecer, assinado pelo médico Mário Jorge Tsuchiya, proibindo as visitas virtuais de familiares a pacientes com Covid-19 nas enfermarias e UTIs. No texto, o órgão dizia ser absolutamente proibida a exposição de pacientes sedados ou em coma, pela impossibilidade de consentimento e para quem não haveria interação com os familiares.
A médica escreveu um artigo para a revista Veja demonstrando sua indignação. Numa notificação extrajudicial, o Cremesp pediu que Ana Claudia retirasse do ar o texto, ao alegar que o parecer não tinha força de resolução e que, portanto, não era uma proibição, mas, sim, o ponto de vista de um único médico.
Ana Claudia encaminhou uma contranotificação ao conselho reafirmando seu direito de liberdade de expressão. Duas semanas depois da publicação do parecer, o Cremesp divulgou uma resolução dizendo que a interação virtual pode ocorrer caso o paciente tenha autorizado previamente ou o responsável indicado aprove.
A querela virtual acabou dando exposição à causa. Duas deputadas federais, Luísa Canziani (PTB-PR) e Soraya Santos (PL-RJ), ajudaram a movimentar um dos dois projetos de lei parados na Câmara dos Deputados que tratam das visitas virtuais.
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Assim nasceu a campanha “Preciso dizer que te amo”, encabeçada por Ana Claudia, uma tentativa de criar mobilização social para que o PL 2136 seja aprovado. Foi a advogada Franciane Campos, uma das organizadoras da ação, quem ajudou a redigir o novo texto do PL que estava parado.
O documento, ainda em fase de finalização, garante ao menos uma visita virtual ao dia, inclusive para sedados ou em coma, desde que mediante um termo de responsabilidade, na tentativa de resguardar a privacidade dos envolvidos.
— Esperamos que o presidente da Câmara paute o PL de forma mais célere, para que todos tenham acesso à realização das visitas virtuais — afirmou Campos.
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