Em votação apertada, Peru aprova abertura de processo de impeachment contra presidente

O Congresso peruano aprovou na noite desta sexta-feira a abertura do processo de impeachment do presidente Martín Vizcarra. Em uma votação bastante apertada, a moção teve 65 votos a favor, 36 contra e 24 abstenções. Eram necessário 52 votos para a instalação do processo. A data da defesa de Vizcarra ainda não foi definida. Ele enfrenta a maior crise política de seu governo por supostamente tentar obstruir uma investigação parlamentar de suborno envolvendo funcionários da Presidência. Seu mandato termina oficialmente em 28 de julho de 2021.

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O Congresso precisa agora de 87 votos para remover Vizcarra, que não tem partido nem bancada. Caso a moção por “incapacidade moral” seja aprovada, ele será automaticamente substituído pelo presidente do Congresso, Manuel Merino, que é membro da tradicional Ação Popular, de centro, um dos partidos signatários do pedido de afastamento e integrante da aliança de quatro partidos que dominam o Congresso, ao lado da Aliança para o Progresso, da União pelo Peru e do Podemos.

O pedido de destituição do presidente já foi aprovado em primeira votação, na quinta-feira, por 95 dos 130 parlamentares.

A decisão parlamentar de analisar o afastamento de Vizcarra acontece dois anos após o impeachment do ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski, envolvido nos escândalos de corrupção política da Odebrecht, e em meio a confrontos constantes entre o Congresso e o Executivo para aprovar uma reforma política promovida pelo governo visando barrar a candidatura de políticos condenados pela Justiça.

No centro da nova polêmica, porém, estão gravações em que Vizcarra supostamente pede a funcionárias do governo que mintam em uma investigação parlamentar envolvendo Richard Cisneros, um artista pouco conhecido na mídia local.

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Segundo investigações, Cisnero teria recebido contratos governamentais irregulares para fazer palestras motivacionais no valor de 175.400 soles (cerca de R$ 261,4 mil) em meio a uma pandemia que provocou recessão econômica e revelou o despreparo do sistema de saúde do país, que tem as mais altas taxas de mortalidade por coronavírus do mundo.

— Vizcarra é considerado um político honesto pela maior parte dos peruanos. Embora isso devesse ser um pré-requisito para todo gestor público, essa é considerada uma característica altamente positiva num país envolvido em sucessivos escândalos de corrupção. Além disso, ele tem passado, desde que assumiu o poder, uma mensagem à sociedade peruana de que pretende conduzir uma transição tranquila e pacífica até a próxima eleição, que ocorrerá em menos de um ano — disse ao GLOBO Wagner Iglecias, professor do Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina da USP.

Os áudios de Vizcarra foram entregues ao Congresso pelo deputado Edgar Alarcón, presidente da comissão que investiga o caso e membro do partido União pelo Peru, no mesmo dia em que a reforma parlamentar seria votada. Alarcón foi denunciado por corrupção em julho deste ano numa ação referente ao seu período como controlador-geral da República, entre 2016 e 2017, e seria impedido de concorrer se a medida fosse aprovada.

— O Peru é um país que tem um sistema amplamente afetado pelas redes de corrupção — disse ao GLOBO Adriana Urrutia, presidente da Associação Civil Transparência e diretora da Escola de Ciência Política Antonio Ruiz de Montoya de Lima. — A crise que vivemos é estrutural, multinível e que poderia ter sido resolvida se as forças políticas tivessem considerado uma agenda conjunta nacional .

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Em pronunciamento na noite de quinta-feira, Vizcarra afirmou que não renunciará e que tem a "consciência tranquila". Ele disse que os áudios foram "editados e manipulados maliciosamente", para tirar as palavras de fora do seu contexto, e acusou o Congresso de buscar "desestabilizar a democracia, tomar o controle do governo para permitir a reeleição de deputados e o adiamento das eleições" gerais, marcadas para 11 de abril.

— Primeiro você tem que ver o que é, e depois o que vai ser dito — diz Vizcarra na gravação a duas de suas assessoras, às quais pede para mentir no Congresso sobre a quantidade de vezes que o ex-colaborador investigado foi ao Palácio do Governo.

As assessoras que intervêm no diálogo são Miriam Morales e Karem Roca, que mencionam a Vizcarra até cinco visitas de Richard Cisneros.

— É preciso dizer que ele entrou duas vezes [em vez de todas as cinco] — Vizcarra pede a elas. — O que fica claro é que nessa investigação todos estamos envolvidos.

Lei da ficha limpa

Antes de votar a abertura do impeachment na tarde de sexta-feira, o Congresso peruano pegou a todos de surpresa e, numa manobra política astuciosa, votou e aprovou a tão polêmica reforma constitucional que impede que condenados em primeira instância concorram a cargos públicos.

A medida recebeu 111 votos a favor e valerá já para as eleições gerais de 2021. Os votos contra (8) e as abstenções (8) vieram dos partidos conservadores Força Popular, de Keiko Fujimori, e União pelo Peru.

Segundo Meléndez, porta-voz da Aliança para o Progresso, o objetivo era fazer com que Vizcarra parasse de alegar que o Congresso estava pedindo seu impeachment apenas para não aprovar as reformas eleitorais pendentes.

— Houve muita pressão para votarmos essa lei hoje — disse María Teresa Céspedes Cárdenas, portavoz da Frente Popular Agrícola do Peru (Frepap). — E fizemos isso para mostrar que somos um Congresso renovado e respeitável.

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Esse projeto de lei, no entanto, “é mais um lance na disputa que Vizcarra e o Congresso vêm travando há meses”, segundo Iglecias.

— É importante lembrar que o presidente não tem partido e nem bancada parlamentar. Governa com o apoio das ruas, e já teve de montar e desmontar seu ministério diversas vezes, pois o mesmo não foi aprovado pelo Parlamento, como manda a Constituição peruana — disse Iglecias. — O projeto de barrar candidaturas de políticos condenados pela Justiça é controverso, e parece ser o elemento detonador de mais essa disputa entre os dois Poderes.

Ainda segundo o sociólogo, os apoiadores de Vizcarra consideram que a iniciativa visa “promover uma progressiva depuração do sistema político do país”, enquanto seus opositores acham que “a medida é autoritária e cerceia o amplo direito de defesa de opositores do governo eventualmente envolvidos em processos judiciais”.

— O sistema político no Peru está tão fragilizado que os partidos políticos têm se convertido em franquias, não têm uma agenda programática, nem trabalho político — disse Urrutia. — Se você pensa em governabilidade, que é a condição para que o desenvolvimento aconteça num país, você se dá conta do porquê de o Peru ser o país que tem mais mortos [na pandemia].

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