Morre o escritor John Le Carré, de 'O espião que sabia demais' aos 89 anos

O escritor John Le Carré morreu no sábado, aos 89 anos, na Cornualha, região do sudoeste da Inglaterra. De acordo com um comunicado publicado no site da editora Penguin, ele não resistiu a uma pneumonia. O escritor se notabilizou por seus livros sobre espionagem, situados durante a Guerra Fria. Segundo seus agentes, a doença de Le Carré não teve relação com a Covid-19.

Relembre: Os dramas e conflitos por trás do Muro de Berlim contados pelo cinema

Nascido David Cornwell, Carré atuou como agente secreto na Suíça, enquanto estudava alemão no país, no final da década de 1940. Mais tarde, foi professor na tradicional escola de Eton, na Inglaterra, antes de ingressar no Serviço de Relações Exteriores britânico como oficial de inteligência. Seu trabalho era recrutar e comandar espiões em um escritório do MI5 em Londres.

Nessa mesma época, começou a escrever — sempre à mão — suas obras, que revolucionaram a literatura de espionagem. Entre elas, destacam-se "O espião que veio do frio", "O gerente da noite", "O espião que sabia demais" e "O jardineiro fiel". Parte da produção também foi adaptada para o cinema e a TV.

'O túnel dos pombos': Confira a crítica do livro de memórias de Le Carré, publicado em 2018

O ano que marca o início da aventura de Cornwell na literatura é 1961, quando o autor publicou "O morto ao telefone". A história apresentaria o maior personagem de sua carreira, o também espião George Smiley, que voltaria a aparecer em livros como "A vingança de Smiley" (1979) e em sua obra-prima, "O espião que saiu do frio", publicado em 1963.

Naquele ano, o Muro de Berlim mal havia completado seu segundo aniversário. O mundo ainda tentava entender a dimensão política e social da divisão da Alemanha, e Cornwell ainda era um jovem funcionário do serviço secreto britânico. O livro relatava a trágica missão de um Alec Leamas, um agente inglês infiltrado no lado oriental de Berlim.

Novas traduções: Prestes a entrar em domínio público, 'A revolução dos bichos' muda de título para se afastar de propaganda anticomunista

A história era fictícia, mas verossímil. Mesmo tendo assinado com o pseudônimo de John le Carré para preservar sua identidade, o autor perdeu o emprego. O universo da espionagem acabou para Cornwell, enquanto a marca Le Carré viveria para sempre.

Até então, o modelo de espião para a literatura era o James Bond de Ian Fleming — suave, urbano, sedutor e dedicado à rainha e ao país. Com seu talento impecável para sair de problemas enquanto levava as mulheres para a cama, Bond alimentou o mito da espionagem como uma traquinagem glamorosa e excitante.

Le Carré, por sua vez, virou essa noção de cabeça para a baixo com seus livros que retraravam as operações da inteligência britânica como fossas de ambiguidade, em que o certo e o errado andavam próximos demais. Mal vestido, infeliz e implacável, George Smiley é o personagem que melhor representa a sequência de espiões solitários e desiludidos inaugurada por Le Carré. Nas obras do escritor, a espionagem não passa de um trabalho movido por problemas de orçamento, jogos de poder burocráticos e maquinações opacas de políticos. Seus executores, os agentes de inteligência, são meros homens que têm tanta probabilidade de serem traídos por colegas e amantes quanto pelo inimigo.

Relembre: A carreira de Sean Connery, o maior intérprete de James Bond no cinema

Em 1997, em entrevista ao GLOBO (em ocasião do lançamento de seu livro "O alfaiate do Panamá", uma rocambolesca intriga envolvendo agentes britânicos), Le Carré defendeu que a espionagem continuava viva como fonte de boas histórias, apesar de o desmantelamento da União Soviética ter feito muita gente decretar apressadamente o fim dos romances do gênero.

— O enfoque pode ter mudado um pouco, mas a segunda profissão mais velha do mundo sobrevive — disse, contando ainda como era sua rotina: — Minhas atividades básicas são: escrever, caminhar, nadar e beber.

Além da espionagem, Le Carré também exploraria temas como o papel das grandes empresas farmacêuticas em "O jardineiro fiel" (2001), adaptado para o cinema em 2005, com Ralph Fieness ("Harry Potter") como protagonista e direção do brasileiro Fernando Meirelles. À época, o escritor elogiou a produção, e disse que aquela era a "primeira vez que um cineasta faz de um dos meus livros um grande filme". O filme integrou a lista dos 100 melhores da década do The Times.

Em "O homem mais procurado" (2008), Le Carré se debruçaria sobre a guerra ao terrorismo. Já "O gerente noturno" (1993) discutiria o comércio de drogas e armas numa narrativa eletrizante, adaptada para uma série de TV pela BBC em 2016, com direção de Susanne Bier.

Em 2017, o escritor conversou com O GLOBO sobre "Um legado de espiões", livro em que ressuscitava personagens de toda a sua carreira, e que se entrelaça com seu clássico de 1963 ao trazer, entre outras figuras, Peter Guillam, ex-braço direito de George Smiley, como narrador da história. Na entrevista, Carré se disse "desiludido" por ver o mundo arrastado pelas "políticas doentias" vindas dos EUA e da Rússia.

— Quando o Muro caiu, houve uma oportunidade para alianças entre ex-inimigos. Mas o que ocorreu foi apenas a expansão dos interesses comerciais sobre a Europa do Leste. Hoje temos mais blocos rivais do que o mundo pode digerir e uma crescente hostilidade à social democracia e à decência humana — protestou Le Carré à época.

Durante a conversa, o britânico também relembrou sua própria atuação como espião durante a Guerra Fria.

— Minhas fraquezas como agente eram a fantasia e a impaciência. Além disso, como toda pessoa decente, eu tinha desprezo por meus superiores — confessou.

Dráuzio Varella: Em novo livro, médico revisita marcos da medicina no Brasil e propõe reflexão sobre o país

Apesar de todo o sucesso dos seus livros (mais de 20 ao longo de 50 anos de carreira), o autor nunca autorizou que seu nome concorresse a prêmios literários. No entanto, muitos críticos consideraram suas obras literatura de primeira linha.“Acho que ele deixou facilmente de ser um escritor de gênero e será lembrado como talvez o romancista mais significativo da segunda metade do século XX na Grã-Bretanha”, disse o escritor Ian McEwan ao jornal britânico “The Telegraph” em 2013, acrescentando que Carré “traçou nosso declínio e registrou a natureza de nossas burocracias como ninguém mais fez”.

Em seu último romance, "Agent running in the field" (publicado em Portugal como "Agente em campo", em 2019), o escritor volta ao tema da espionagem para narrar as divisões do mundo contemporâneo. À sua editora, Carré afirmou que escreveu a obra "com febre" em 2016, após o referendo do Brexit. Em 2020, o autor recebeu o prêmio Olof Palme, por seu conjunto de trabalhos "comprometidos com a liberdade do indivíduo e as questões fundamentais da humanidade". Além da produção ficcional, ele também deixa uma autobiografia, "O túnel dos pombos", publicada em 2018.

Mary Mount, editora de John le Carré na Penguin Random House nos últimos dez anos de sua vida, disse ao site da editora: "A morte de John le Carré é uma grande perda para todos nós que o amamos e admiramos, e para o mundo cultural e a paisagem política deste país. Carré foi um escritor que se preocupou quase tão profundamente com seu país quanto com seu trabalho. A qualidade de seus escritos nunca esmoreceu em uma coleção de romances verdadeiramente invenca autorizojável. Sua capacidade de trabalhar duro era extraordinária, e ele também me fazia rir muito."

Ao site, Jonny Geller, CEO do The Curtis Brown Group e agente de le Carré, disse: "Ele foi um gigante indiscutível da literatura inglesa. Carré definiu a era da Guerra Fria e falou sem medo a verdade ao poder nas décadas que se seguiram. Seu trabalho foi lido e amado em todo o mundo durante seis décadas. Representei David por quase 15 anos. Perdi um mentor, uma inspiração e, o mais importante, um amigo. Não veremos alguém como ele novamente."

A família do escritor também publicou uma nota lamentando sua morte:

“É com grande tristeza que devemos confirmar que David Cornwell — John le Carré — faleceu de pneumonia na noite de sábado após uma breve batalha contra a doença. David deixa sua amada esposa há quase cinquenta anos, Jane, e seus filhos Nicholas, Timothy, Stephen e Simon. Todos nós lamentamos profundamente sua morte. Nossos agradecimentos vão para a maravilhosa equipe do NHS no Royal Cornwall Hospital em Truro. pelo cuidado e compaixão que demonstrou durante sua internação. Sabemos que eles compartilham nossa tristeza."

O mestre da literatura de horror, Stephen King, também lamentou a morte de Carré em sua conta no Twitter:

"Esse ano terrível levou um gigante da literatura e um espírito humanitário", escreveu o autor de "O iluminado".



Enregistrer un commentaire

0 Commentaires